14 de maio de 2025

Dever-se-á pôr termo às provas do próximo?

Por O Redator Espírita
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Dever-se-á pôr termo às provas do próximo? Uma reflexão à luz do Espiritismo.

A Doutrina Espírita, ao lançar luz sobre as causas atuais e anteriores das aflições, não o faz com o intuito de justificar o sofrimento como um castigo irremediável, mas sim de oferecer ao Espírito encarnado as chaves da compreensão de seu próprio processo evolutivo. No Capítulo V de O Evangelho Segundo o Espiritismo, intitulado “Bem-aventurados os aflitos”, encontramos uma das mais ricas abordagens sobre a dor humana sob a ótica espiritual. E, dentre os diversos itens que o compõem, destaca-se o item 27, ditado pelo Espírito Bernardino, que trata de uma questão delicada e profundamente atual: deve-se ou não pôr termo às provas do próximo, quando está ao nosso alcance fazê-lo?

Este artigo tem por objetivo refletir sobre essa questão fundamental à luz do espiritismo, tendo como única e sólida base o mencionado trecho da obra codificada por Allan Kardec. Serão aqui analisados, ponto a ponto, os ensinamentos do Espírito Bernardino, buscando extrair suas implicações morais, filosóficas e práticas para o espírita sincero que deseja alinhar sua vida à lei do amor e da caridade. A leitura atenta e a compreensão profunda dessa orientação espiritual são capazes de transformar nossa visão sobre a dor alheia e, principalmente, sobre o nosso papel diante dela.

A Terra como Mundo de Expiação e Provas

O texto inicia com um lembrete que ecoa por toda a codificação kardequiana: a Terra é, ainda, um mundo de expiação e provas. Os Espíritos que nela reencarnam têm, em geral, débitos a saldar perante a consciência divina e compromissos evolutivos a cumprir.

“Já vos temos dito e repetido muitíssimas vezes que estais nessa Terra de expiação para concluirdes as vossas provas e que tudo que vos sucede é consequência das vossas existências anteriores, são os juros da dívida que tendes de pagar.”

Essa afirmação lança a base para toda a reflexão posterior. O sofrimento que cada um enfrenta não é fruto do acaso nem da injustiça, mas consequência de escolhas passadas, muitas vezes realizadas em contextos de ignorância, egoísmo ou rebeldia espiritual. Porém, ao compreender esse princípio, o espírita corre o risco de cair em uma interpretação fria e equivocada da justiça divina: a de que, por se tratar de expiação, não cabe a ninguém intervir, pois seria ir contra os desígnios de Deus.

Este é o ponto central que o Espírito Bernardino combate com firmeza, alertando para os “funestos efeitos” dessa visão distorcida, que pode levar o indivíduo ao imobilismo moral, à indiferença espiritual e, mais grave, à colaboração inconsciente com o sofrimento alheio.

A Perigosa Interpretação da Justiça Divina

O segundo trecho da mensagem de Bernardino denuncia uma atitude comum entre alguns adeptos da Doutrina Espírita: a de julgar que, sendo a vida terrena uma expiação, é melhor deixar que os sofrimentos sigam seu curso, ou mesmo agravá-los com o intuito de torná-los “mais proveitosos”.

“Pensam alguns que, estando-se na Terra para expiar, cumpre que as provas sigam seu curso. Outros há, mesmo, que vão até ao ponto de julgar que, não só nada devem fazer para as atenuar, mas que, ao contrário, devem contribuir para que elas sejam mais proveitosas, tornando-as mais vivas. Grande erro.”

Aqui se revela o quão tênue pode ser a linha entre a compreensão espiritual da dor e o endurecimento do coração. Há uma diferença abissal entre aceitar com resignação o sofrimento que nos cabe viver e assumir uma postura de indiferença perante o sofrimento do outro. Ao confundir o respeito aos desígnios divinos com omissão ou frieza emocional, o indivíduo incorre em grave equívoco moral.

Mais ainda: há aqueles que assumem o papel de “instrumentos da justiça divina” com mãos que ferem, olhos que julgam e palavras que humilham, acreditando estar colaborando com a evolução do próximo. Bernardino condena essa atitude como sendo uma manifestação clara de orgulho espiritual.

A Humildade Diante dos Desígnios de Deus

A seguir, o Espírito nos interpela com uma série de perguntas retóricas, profundas e desconcertantes:

“Dar-se-á, porém, conheçais esse curso? Sabeis até onde têm elas de ir e se o vosso Pai misericordioso não terá dito ao sofrimento de tal ou tal dos vossos irmãos: ‘Não irás mais longe?’”

Essas perguntas colocam o ser humano em seu devido lugar: o de criatura limitada, que não conhece o todo, que não enxerga o plano completo da Providência. Por isso, qualquer julgamento ou atitude omissa baseada na suposição de que o sofrimento de outrem deve continuar, é infundada e presunçosa. Não temos, como criaturas, o direito de decidir quem deve ou não sofrer. Só Deus conhece o limite de cada provação, e somente Ele pode determinar quando ela deve cessar.

Essa argumentação é um convite à humildade espiritual, à renúncia do papel de juiz e ao cultivo de uma postura ativa de misericórdia. Ao invés de indagar se o outro merece ou não aquela dor, o espírita consciente deve se perguntar: “Que posso eu fazer para amenizá-la?”

O Papel do Consolador: Instrumento de Deus

O centro da mensagem se encontra aqui:

“Sabeis se a Providência não vos escolheu, não como instrumento de suplício para agravar os sofrimentos do culpado, mas como o bálsamo da consolação para fazer cicatrizar as chagas que a sua justiça abrira?”

Esta é a sublime missão do espírita diante da dor alheia: ser instrumento de consolação, não de julgamento; ser bálsamo, não veneno; ser paz, não condenação. Mesmo quando a dor que o outro enfrenta for, de fato, uma expiação necessária, cabe a nós oferecer-lhe forças para suportá-la, não peso para torná-la insuportável.

Cada ser humano pode estar colocado no caminho do outro por designação divina, como oportunidade de exercer a caridade, a empatia, o amor em ação. E essa oportunidade não pode ser desperdiçada por falsas interpretações da justiça espiritual.

A Responsabilidade Ativa do Espírita

Bernardino prossegue:

“Dizei antes: ‘Vejamos que meios o Pai misericordioso me pôs ao alcance para suavizar o sofrimento do meu irmão. Vejamos se as minhas consolações morais, o meu amparo material ou meus conselhos poderão ajudá-lo a vencer essa prova com mais energia, paciência e resignação.’”

Aqui se define a ética da solidariedade espírita. A dor do outro é, também, nossa responsabilidade. A omissão, ainda que justificada por argumentos doutrinários mal compreendidos, pode se transformar em negligência moral. O espírita não pode ser um espectador do sofrimento alheio, mas um servidor do bem, uma ponte entre o céu e a Terra.

As ferramentas para essa ação estão ao nosso alcance: palavras fraternas, escuta ativa, auxílio material, prece sentida, orientação segura. Nada disso interfere nos desígnios de Deus, pois a verdadeira caridade não subverte a justiça divina — ela a realiza no campo da misericórdia.

A Prova de Ajudar

Bernardino, com sabedoria, ainda acrescenta:

“Vejamos mesmo se Deus não me pôs nas mãos os meios de fazer que cesse esse sofrimento; se não me deu a mim, também como prova, como expiação talvez, deter o mal e substituí-lo pela paz.”

Ou seja, ajudar o outro também pode ser nossa própria prova. Não raro, os meios que temos para aliviar a dor alheia nos foram concedidos justamente como parte de nosso processo evolutivo. Ignorar essa responsabilidade é desperdiçar uma oportunidade preciosa de crescimento moral.

A ajuda, portanto, não é apenas um ato de bondade: é, muitas vezes, um chamado da própria justiça divina para que exercitemos o bem. E, se negligenciado, pode se converter em débito espiritual.

Amor, e Não Julgamento

A advertência final é contundente:

“Ajudai-vos, pois, sempre, mutuamente, nas vossas respectivas provações e nunca vos considereis instrumentos de tortura.”

A verdadeira espiritualidade não pode se alinhar à crueldade, ainda que sob o pretexto de promover o bem. O espiritismo é a doutrina do amor, da esperança e da regeneração. Portanto, qualquer atitude que alimente a dor alheia, direta ou indiretamente, sob o pretexto de disciplina ou justiça, deve ser repelida.

O espírita, acima de tudo, é chamado a ser um servo do amor. A sua fé se manifesta pela caridade; sua crença, pela compaixão; seu conhecimento, pelo consolo que oferece.

A Submissão Consciente à Vontade de Deus

O texto conclui com uma reflexão que equilibra ação e confiança:

“Pode, portanto, sem receio, empregar todos os esforços por atenuar o amargor da expiação, certo, porém, de que só a Deus cabe detê-la ou prolongá-la, conforme julgar conveniente.”

Essa frase encerra, com harmonia, a dialética entre ação humana e vontade divina. O espírita deve agir sempre que puder — com responsabilidade, com amor, com discernimento. Mas também deve compreender que o resultado final está nas mãos de Deus. Nossa ação deve ser ativa, mas desprovida de pretensão. Fazemos o bem por dever, por amor, não por controle sobre o destino do outro.

Conclusão: A Lei de Amor em Movimento

O item 27 do Capítulo V de O Evangelho Segundo o Espiritismo é um verdadeiro tratado sobre a caridade ativa. Nele aprendemos que compreender o sofrimento do outro como parte de sua trajetória evolutiva não é justificativa para omissão. Ao contrário, é convite à ação amorosa.

O espírita, esclarecido quanto às causas das aflições, é igualmente iluminado quanto aos meios de aliviá-las. Não se trata de interferir no plano de Deus, mas de cumpri-lo como instrumento de Sua misericórdia. A cada dor que encontrarmos em nosso caminho, perguntemo-nos: o que posso fazer para ser bálsamo e não espinho?

A verdadeira vivência espírita é a do amor em movimento. E esse amor se traduz em gestos concretos: um olhar de ternura, uma palavra de encorajamento, uma mão estendida, uma escuta silenciosa, uma presença acolhedora. Assim, cumprimos nossa missão e honramos o Cristo que nos ensinou: “Amai-vos uns aos outros, como eu vos amei.”