A Cólera, segundo Hahnemann
A Cólera, segundo Hahnemann: Reflexões Espíritas sobre a Reforma Íntima e a Responsabilidade do Espírito

A Doutrina Espírita, codificada por Allan Kardec, nos oferece valiosas instruções para o aperfeiçoamento moral do ser humano, conduzindo-nos ao entendimento de que a vida na Terra é uma escola de crescimento espiritual. Dentre as lições preciosas que encontramos nas páginas de O Evangelho Segundo o Espiritismo, destaca-se a advertência de Hahnemann, Espírito nobre, no item 10 do capítulo IX — “Bem-aventurados os que são brandos e pacíficos”, sob o título “A Cólera”.
Nesse trecho, Hahnemann analisa a cólera não como algo imposto pelo organismo físico, mas como uma tendência e uma escolha do Espírito que ainda não se disciplinou. Ele esclarece, com profundidade, a relação entre temperamento, organismo e responsabilidade espiritual. Sua mensagem, datada de Paris, 1863, mantém-se atual e necessária, pois ainda hoje enfrentamos as mesmas justificativas e desculpas para nossos desajustes íntimos.
Ao longo deste artigo, exploraremos as ideias de Hahnemann, procurando compreender como a cólera se insere em nossas imperfeições morais, de que maneira ela pode ser superada e qual o papel do livre-arbítrio e do esforço pessoal na conquista da brandura. Nosso objetivo é oferecer ao leitor espírita — e ao simpatizante — elementos sólidos para a reflexão e o trabalho de reforma íntima, tão indispensável ao progresso do Espírito.
O contexto da mensagem de Hahnemann
Quando Allan Kardec seleciona e organiza as instruções dos Espíritos em O Evangelho Segundo o Espiritismo, ele busca apresentar ao mundo moralidades práticas que sirvam de guia seguro. No capítulo IX, que trata dos bem-aventurados brandos e pacíficos, vemos a importância de cultivar a mansuetude como virtude que nos aproxima de Jesus, o modelo maior de brandura e pacificação.
Hahnemann — reconhecido no mundo material como o fundador da homeopatia — manifesta-se do plano espiritual trazendo um ensinamento profundamente ético: o homem não está preso ao seu temperamento físico; ele pode e deve corrigir-se de suas imperfeições morais. A cólera, esse estado de ira e violência, não é fruto do corpo, mas do Espírito que ainda se compraz em suas próprias fraquezas.
Essa instrução vem, portanto, no contexto de um capítulo que nos convida a examinar nossas reações e emoções. Não se trata apenas de um conselho vago, mas de uma afirmação categórica sobre a responsabilidade pessoal e a capacidade de transformação. É sobre isso que precisamos refletir.
A falsa ideia de uma natureza imutável
Logo no início do item 10, Hahnemann denuncia uma crença muito comum, que até hoje ouvimos em conversas cotidianas: a ideia de que certas características são inalteráveis, porque fazem parte da “natureza” do indivíduo. Quantas vezes escutamos alguém dizer: “Sou assim mesmo, não consigo mudar, meu gênio é forte”?
Essa justificativa é apontada por Hahnemann como falsíssima. Por quê? Porque ela desresponsabiliza o Espírito. Ao atribuir ao temperamento ou ao organismo a causa de suas reações violentas, o indivíduo acaba acusando indiretamente a Deus, como se o Criador tivesse o condenado a uma condição moral irremediável.
Para a Doutrina Espírita, essa visão é inadmissível. Somos criados simples e ignorantes, dotados de livre-arbítrio, e destinados ao progresso. Nossas imperfeições são transitórias, frutos de escolhas e hábitos adquiridos, e podemos corrigi-las quando tomamos consciência delas e trabalhamos com perseverança.
Hahnemann deixa claro: o homem se compraz muitas vezes em seus defeitos, porque se acomodou a eles. Corrigi-los exige esforço, disciplina e paciência, e isso implica abrir mão de certas justificativas confortáveis. Não se trata de negar as dificuldades que alguns temperamentos trazem, mas de não aceitá-las como sentenças imutáveis.
O papel do temperamento e do organismo
Um ponto de grande sabedoria no texto de Hahnemann está na distinção que ele faz entre o organismo físico e as tendências do Espírito. Ele reconhece que há temperamentos mais inclinados a atos violentos, assim como há músculos mais flexíveis que facilitam certos movimentos. Essa é uma observação real: nosso corpo pode, de fato, oferecer condições mais ou menos favoráveis a determinadas expressões.
Contudo, ele alerta: não se deve confundir predisposição com causa determinante. O corpo pode ser um instrumento, mas não é a fonte da cólera. Um Espírito pacífico, mesmo em um corpo bilioso, será pacífico; e um Espírito violento, mesmo em um corpo linfático, continuará violento — apenas expressará sua violência de modo diferente, talvez de forma mais contida e concentrada.
Essa distinção é essencial para compreendermos a Doutrina Espírita, que coloca o Espírito como ser pensante e responsável. O corpo é uma veste temporária, um instrumento de manifestação. Ele pode oferecer limitações ou facilidades, mas jamais impõe vícios morais. Esses são conquistas infelizes do próprio Espírito.
A cólera como escolha do Espírito
Hahnemann afirma categoricamente: o corpo não dá cólera a quem não a possui. Essa frase simples desmonta qualquer tentativa de transferir nossa responsabilidade ao organismo físico ou ao temperamento herdado. Virtudes e vícios são inerentes ao Espírito, e é nele que devem ser tratados.
Ao dizermos: “Não posso evitar, é do meu sangue”, estamos nos eximindo de um dever moral. A espiritualidade superior nos esclarece que todo vício é uma escolha mantida por comodismo, e toda virtude é uma conquista fruto de esforço consciente. Se assim não fosse, onde estariam o mérito e a responsabilidade? Se não pudéssemos mudar, a lei do progresso seria uma ficção.
A cólera, portanto, não é um destino. É um estado moral, que pode ser transformado quando o Espírito decide de fato melhorar-se. E é aqui que entra a proposta espírita da reforma íntima: um trabalho diário, paciente, muitas vezes silencioso, mas profundamente libertador.
A reforma íntima e o poder da vontade
No texto de Hahnemann, encontramos uma referência direta ao poder da vontade. Ele nos convida a lembrar as transformações miraculosas que presenciamos nos que se esforçam verdadeiramente por se melhorar. A experiência espírita demonstra que, quando alguém se decide a abandonar um vício ou corrigir um defeito moral, pode alcançar resultados surpreendentes, mesmo em pouco tempo.
O progresso moral não acontece por milagre externo, mas por esforço interno sustentado. A vontade firme é a chave. Muitas vezes subestimamos nossa própria capacidade de transformação, esquecendo-nos de que somos Espíritos imortais, dotados de recursos interiores imensos. O corpo, com todas as suas limitações, não pode impedir a mudança íntima quando há decisão sincera.
Essa perspectiva nos leva a refletir: quanto esforço temos colocado em nossa reforma íntima? Quantas vezes, diante de uma explosão de cólera, justificamos nosso comportamento em vez de reconhecermos nossa responsabilidade? Hahnemann nos desafia a olhar para dentro e assumir o compromisso de nos educarmos emocionalmente.
A cólera e o orgulho
Outro ponto valioso da mensagem é a relação entre cólera e orgulho. Hahnemann afirma que a desculpa do temperamento é, na verdade, uma consequência do orgulho que permeia todas as imperfeições humanas. O orgulhoso não admite sua culpa; prefere atribuir sua falta a fatores externos, para preservar a imagem de si mesmo.
A cólera, nesse sentido, é muitas vezes um mecanismo de defesa do ego ferido. Quando algo contraria nossas expectativas ou fere nossa vaidade, reagimos com violência verbal, gestual ou mesmo física. O orgulho alimenta a cólera, e a cólera reforça o orgulho, criando um ciclo vicioso.
O Espiritismo nos mostra que o caminho para romper esse ciclo é a humildade. Reconhecer nossas falhas não nos diminui; ao contrário, nos engrandece aos olhos da consciência e nos aproxima da paz interior. Ser brando e pacífico não é sinal de fraqueza, mas de força moral e domínio de si.
As consequências espirituais da cólera
Quando nos deixamos dominar pela cólera, não apenas prejudicamos aqueles que estão ao nosso redor, mas também nos desequilibramos espiritualmente. A energia gerada pela ira cria sintonia com Espíritos inferiores que se comprazem na desordem. Assim, ao cultivar a cólera, abrimos portas para influências espirituais negativas.
Além disso, a cólera repetida forma hábitos, e hábitos formam tendências, que podem ser levadas além desta encarnação. O Espírito, ao reencarnar, traz consigo essas inclinações, até que decida enfrentá-las com firmeza. Por isso, é tão importante trabalhar a pacificação interior enquanto estamos na Terra: cada conquista moral é patrimônio eterno do Espírito.
Exemplos práticos e aplicações no cotidiano
Para tornar mais claro o ensinamento de Hahnemann, vejamos algumas situações comuns:
No lar: um familiar nos provoca com palavras ásperas. O primeiro impulso pode ser responder no mesmo tom, mas se lembramos do ensino espírita, podemos silenciar, respirar fundo e responder com serenidade. Esse simples ato já é um exercício de domínio da cólera.
No trabalho: recebemos uma crítica injusta do chefe ou de um colega. Em vez de reagir com indignação, podemos ouvir com calma, avaliar o que há de verdade na crítica e, se necessário, explicar com respeito nosso ponto de vista. Assim evitamos um conflito desnecessário.
No trânsito: alguém nos fecha de maneira imprudente. A reação automática seria buzinar, xingar ou perseguir o outro motorista. Mas o espírita consciente pode usar esse momento para treinar a paciência, lembrando-se de que a cólera nada resolve e apenas aumenta o risco.
Esses exemplos mostram que a lição de Hahnemann não é teórica, mas profundamente prática. Ela se aplica a todos os campos da vida, e cada oportunidade é um degrau na escada do progresso espiritual.
O valor do autoconhecimento
Superar a cólera exige autoconhecimento. Precisamos observar nossos gatilhos internos: o que nos faz perder a calma? Quais circunstâncias nos tiram do equilíbrio? Ao identificar esses pontos vulneráveis, podemos nos preparar melhor, antecipando estratégias de controle emocional.
O Espiritismo nos convida a fazer um exame de consciência diário, avaliando nossos pensamentos, palavras e atitudes. Essa prática, recomendada pelos Espíritos superiores, nos ajuda a perceber onde ainda precisamos trabalhar mais intensamente.
Hahnemann nos mostra que ninguém está condenado a permanecer no vício. O autoconhecimento aliado ao esforço constante é o caminho seguro para a transformação.
A lei do progresso e a esperança
Um dos aspectos mais belos da mensagem de Hahnemann é a reafirmação da lei do progresso. Ele nos lembra que, se não fosse possível corrigir-se, essa lei divina não existiria. Mas ela existe, e está inscrita em nossa consciência e em toda a criação.
O progresso moral é lento, mas certo. Cada vez que resistimos à cólera, cada vez que respondemos com mansidão a uma provocação, estamos avançando. O Espírito não retrocede; pode estagnar por um tempo, mas sempre encontrará circunstâncias que o convidem a retomar a marcha.
Essa perspectiva nos enche de esperança. Não estamos presos ao passado, nem condenados a repetir indefinidamente os mesmos erros. Temos diante de nós a eternidade e a assistência amorosa dos Espíritos superiores, que nos inspiram e amparam em nosso esforço de melhoria.
A brandura como conquista espiritual
Se a cólera é um vício do Espírito, a brandura é uma virtude a ser conquistada. Ela não nasce pronta; é fruto de repetidos esforços, de vigilância constante e de oração sincera.
Ser brando não significa ser passivo diante das injustiças, mas agir com serenidade, sem violência, confiando na justiça divina. É compreender que a cólera não resolve problemas, mas os agrava. A brandura, ao contrário, desarma corações, cria pontes e pacifica ambientes.
Conclusão: o convite de Hahnemann
A mensagem de Hahnemann, ditada em Paris no ano de 1863, continua ecoando através dos tempos, convocando-nos a um compromisso sério com nossa reforma íntima. Ele nos diz, com clareza e firmeza, que:
- A cólera não vem do corpo, mas do Espírito.
- Não podemos nos justificar pelo temperamento ou pelo organismo.
- O poder da vontade é capaz de operar transformações surpreendentes.
- O homem só permanece vicioso porque assim o deseja.
- A lei do progresso assegura que sempre podemos melhorar.
Diante dessas verdades, o que nos resta? Apenas agir. Refletir, sim; estudar, sem dúvida; mas sobretudo praticar. Cada vez que controlamos a cólera, cada vez que escolhemos a brandura, estamos dando um passo em direção ao nosso próprio aprimoramento e contribuindo para um mundo mais pacífico.