29 de setembro de 2025

Antes de Jesus

Por O Redator Espírita
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Revelação das Leis Divinas antes de Jesus

Ao abordar a questão proposta na pergunta 626 de O Livro dos Espíritos — “Só por Jesus foram reveladas as leis divinas e naturais? Antes do seu aparecimento, o conhecimento dessas leis só por intuição os homens o tiveram?” — é preciso retornar ao âmago do que entendemos por “revelação”, por “lei” e por “conhecimento”.

A resposta do Livro dos Espíritos afirma que as leis divinas e naturais “estão escritas por toda parte”; que os que meditaram sobre a sabedoria puderam compreendê-las; e que, ao longo do tempo, os ensinamentos mesmo incompletos prepararam o terreno para a semente que viria com Jesus.

O espírito Miramez, em seu comentário na obra Filosofia Espírita, através da psicografia de João Nunes Maia, amplia e ilumina esses pontos: a revelação é progressiva, atravessa os tempos e os povos, Jesus trouxe a pureza suprema do ensinamento, e os mensageiros humanos transmitiram aquilo que podiam, segundo a capacidade dos ouvintes e a maturidade das sociedades.

Compreender “revelação” e “leis” no contexto espírita

Antes de mais nada, convém esclarecer termos para que a reflexão não se perca em ambiguidade. “Leis divinas e naturais”, conforme a resposta, equivalem às normas que regem a ordem moral e física do universo — aquilo que hoje chamaríamos de princípios éticos e de regularidades naturais. “Revelação”, no sentido espírita que tratamos aqui, não é apenas a exposição literal de um conjunto de regras; é o desvelar progressivo da verdade conforme a capacidade receptiva dos seres. Revelação, portanto, é um processo pedagógico: não chega de uma vez, em toda a sua plenitude, a menos que o destinatário tenha condição de recebê-la.

Do ponto de vista espírita, as leis estão “escritas por toda parte”: no mundo natural, na consciência humana, nas relações sociais. Essa escrita é manifesta através de fenômenos, de consequências morais, de intuições e de inspirações que, quando devidamente interpretadas, apontam para princípios ordenadores. Assim, perguntar se tais leis eram conhecidas antes de Jesus requer diferenciar três níveis de apreensão:

  1. A presença objetiva das leis em toda a Natureza (fato);
  2. O conhecimento intuitivo e prático que alguns seres alcançaram (nível empírico e moral);
  3. A formulação consciente, sistemática e transmissível desses princípios (nível doutrinário e pedagógico).

A resposta do Livro dos Espíritos e o comentário de Miramez estabelecem que todos esses níveis existiam, ainda que com graus variados de clareza e acabamento.

As leis estavam “escritas por toda parte”: o primado da Natureza e da consciência

Um ponto fundamental: quando se diz que as leis divinas estão “escritas por toda parte”, não se está a fazer mera figura poética. Trata-se de uma afirmação epistemológica e teológica — as leis são imanentes. Observando um simples ciclo natural, uma reação de causa e efeito, ou mesmo a dor e as consequências morais de um ato injusto, o homem atento pode extrair uma lição. Miramez reitera esse aspecto ao assinalar que as leis se expressam “desde o vírus até os Espíritos puros”. É uma imagem que indica amplitude: a ordem divina permeia todos os níveis do existir.

Dessa perspectiva, os primitivos pensamentos morais, as intuições de justiça, amor e reciprocidade não são meras coincidências psicológicas; são realidades espirituais traduzidas por meios naturais e sociais. Por exemplo, o reconhecimento do valor da cooperação numa comunidade de caçadores e coletores, ou a proibição de certos atos que destroem o tecido social, são manifestações de leis que já atuavam, mesmo antes de terem sido codificadas em preceitos religiosos ou filosóficos.

Importante: a presença da lei não equivale à sua plena consciência. A diferença entre “estar escrito” e “ser lido” é crucial — muitos povos foram capazes de vivenciar fragmentos da lei sem, contudo, formular uma doutrina que os explicasse com clareza. A resposta do Livro dos Espíritos salienta isso: havia elementos das leis em todas as doutrinas morais, porém incompletos ou adulterados pela ignorância.

Revelação progressiva: mecanismo pedagógico da Providência

Miramez insiste na ideia de que a revelação ocorreu gradativamente. Essa progressão é um princípio pedagógico que se repete em várias áreas da vida: uma criança aprende a falar por etapas; um aprendiz progride por graus; a Ciência avança por incrementos. Analogamente, a Revelação divinal adapta-se ao estágio evolutivo dos receptores.

Por que essa progressão? Porque, como afirma Miramez, “o Espírito, mesmo o de certa elevação, quando internado na carne, lhe falta sensibilidade apurada para a filtragem dos conceitos mais requintados”. Em outras palavras: a limitação do instrumento corporal e a densidade cultural do ambiente impõem fronteiras ao entendimento. O ensinamento deve ser acomodado à sensibilidade e à intelectualidade dos que o recebem, caso contrário, corre-se o risco de incompreensão, deturpação ou até mesmo rejeição.

Dessa forma, as manifestações espirituais e as mensagens morais difundidas antes de Jesus cumpriam a função de semear verdades, preparar consciências e criar substrato moral para o advento posterior de uma revelação mais clara. Miramez fala dos missionários que “prepararam o terreno para receber a semente”. É uma imagem agrícola: preparar o solo, semear, regar e aguardar o amadurecimento do órgão receptor — o coração humano coletivo.

Jesus: intérprete, purificador e exemplo vivo da lei

Se, no estágio das revelações anteriores, encontrávamos fragmentos e preceitos dispersos, Jesus representa, segundo os textos que adotamos aqui, a revelação que os torna inteligíveis em sua pureza. Isso não contradiz a presença anterior das leis; antes, institui sua expressão exemplar e sua vivência integral.

A originalidade de Jesus, à luz do comentário de Miramez e da resposta do Livro dos Espíritos, não está em inventar leis, mas em restaurar e traduzir para a linguagem da alma aquilo que já estava escrito: a verdade do amor, da caridade e da fraternidade universal exibida como princípio vivente. Jesus “levou Seu calor aos corações dos missionários encarregados desta missão” e “foi capaz de revelar aos homens a doutrina na sua pureza lirial” — expressão que ressalta a dimensão estética, sensível e elevadora do Evangelho.

Há, portanto, uma diferença de qualidade: muitos ensinamentos anteriores eram advertências morais, códigos de comportamento, fórmulas rituais; Jesus apresentou a lei em forma viva — a Palavra encarnada no exemplo e no perdão. Miramez chama atenção para a limitação dos seguidores do Mestre, que não puderam, por si só, manter intacta a pureza do ensinamento por falta de “maturidade divina na vivência do que falavam”. O problema maior residiu menos na mensagem original que nos chegou e mais nas vicissitudes históricas — nas interpretações e nos usos humanos.

Intuição versus elaboração doutrinária: dois caminhos do conhecimento

A pergunta original contrapõe uma ideia: antes de Jesus, o conhecimento das leis só por intuição os homens o tiveram? A resposta e Miramez dizem mais: houve intuição, sim, mas também esforço de formulação por parte de sábios, profetas e legisladores. A intuição é uma forma primordial de apreensão — um pressentir de que algo é justo, belo ou verdadeiro —, enquanto a elaboração doutrinária é a atividade de traduzir esses pressentimentos em línguas, códigos e práticas sociais.

Antes de Jesus, as civilizações meditavam e registravam seus pensamentos. Assim, elas conseguiam: mitos que encerravam verdades morais; leis civis que repetiam princípios universais; ritos que visavam harmonizar o indivíduo com o transcendente.

Esses foram veículos de transmissão, ainda que imperfeitos. Miramez, ao afirmar que “os missionários da verdade somente anunciam de acordo com a capacidade dos que ouvem”, sublinha que a comunicação não é neutra; ela é condicionada pela disponibilidade dos receptores.

Portanto, a intuição foi um modo constante de contato humano com as leis, mas não o único. Havia, sim, formulações e transmissões conscientes que pavimentaram um caminho para a recepção mais plena que viria com o Cristo.

A razão humana, a sensibilidade e as distorções históricas

Um desafio permanente é o descompasso entre o que foi anunciado e o que foi compreendido. Miramez enfatiza que verdades foram “adulteradas em todo o mundo, entre todos os povos”, seja por ignorância, seja por interesses, seja pela baixa capacidade interpretativa do emissor ou receptor. Ocorre aí uma segunda lição: a Revelação não é uma mercadoria imune a contextos humanos.

As distorções provêm de várias fontes:

  • limitações cognitivas e emocionais do indivíduo ou da coletividade;
  • interesses políticos ou institucionais que instrumentalizaram ensinamentos;
  • enviesamentos culturais que filtraram as mensagens segundo códigos pré-existentes;
  • simplificações e sincretismos que, ao incorporar verdades, as mesclaram com elementos estranhos.

Para o estudioso espírita, essa constatação convoca à humildade. Reconhecer que verdades anteriores chegaram fragmentadas não significa desprezá-las, mas acolhê-las com discernimento, vendo nelas sementes que, cultivadas, podem frutificar.

Capacidade receptiva: pobreza e abundância espiritual da criatura encarnada

Miramez nos lembra que “basta ao homem interessar-se pela sua descoberta, que ela vai aparecendo para os de boa vontade.” Aqui está o fator decisivo: a vontade e a disponibilidade interior. A evolução espiritual é processo ativo; a criatura precisa corresponder. A comparação que Miramez usa — do vírus e do anjo — é pedagógica: cada ser assimila conforme sua capacidade. O vírus, por ser um organismo simples, processa segundo seu modo; o anjo, pela vastidão de sua natureza, alcança níveis mais elevados. Entre ambos, o ser humano encarnado ocupa uma posição híbrida: dotado de razão, sensibilidade e limitações corpóreas.

A maturidade espiritual da coletividade é variável. Em certas épocas houve homens de gênio cujos ensinamentos permaneceram obscuros para a maioria. Em outras, houve um terreno mais fértil. A intervenção do Cristo, portanto, aparece como uma aceleração e clarificação do processo, não como uma invenção.

A função mediúnica e a retransmissão das verdades

No comentário de Miramez destaca-se a presença do fenômeno mediúnico como instrumento de reavivamento do ensinamento cristão. “É por isso que se encontram muitas verdades adulteradas… mas como agora estamos mais amadurecidos, a verdade está chegando, como luz…” Ele menciona explicitamente que o Cristo usa “uma grande falange de Espíritos elevados para a disseminação das verdades” e que isso se dá também pelos processos mediúnicos.

Isso significa duas coisas:

  1. A mediunidade não é um adereço místico para poucos; é um canal pelo qual as mensagens da esfera espiritual continuam a orientar a Terra;
  2. A prática mediúnica deve ser responsável — a filtragem, o discernimento e a vivência concreta dos preceitos permanecem como critérios de veracidade.

A mediunidade, portanto, é instrumento de educação progressiva. Ela revive, corrige e adapta o Evangelho ao estágio atual das consciências. Mas para que cumpre fielmente essa tarefa, é indispensável que os médiuns e as instituições se empenhem na própria reforma íntima, na ética e no estudo constante.

Perspectiva ecumênica: reconhecer o que é verdadeiro em outras tradições

Uma consequência prática da premissa de que as leis estavam presentes antes de Jesus é o dever de reconhecer pontos de verdade nas demais religiões e manifestações culturais. Miramez afirma que “os preceitos que consagram foram, desde todos os tempos, proclamados pelos homens de bem”. Logo, afirmar a unicidade do Cristo enquanto expressão máxima da Lei não implica negar a validade das outras expressões que a anteciparam ou fragmentariamente a contiveram.

A visão espírita, nesse aspecto, propõe uma ecologia espiritual: cada povo ofereceu algo — uma parábola, um ritual, um imperativo moral — que, quando disposto com discernimento, contribui para a edificação comum. Isso exige do espírita madura discrição: não ceder ao sincretismo acrítico, nem rejeitar por orgulho o que já foi trazido através de outras frentes espirituais.

Implicações éticas e práticas para o homem de hoje

O reconhecimento de que as leis sempre existiram e de que Jesus veio como restabelecedor e clarificador tem implicações concretas para a conduta individual e comunitária:

  • Humildade intelectual: reconhecer-se aprendiz permanente; admitir que verdades podem estar espalhadas em formulários variados.
  • Busca ativa: não supor que a compreensão virá por inércia; o homem interessado deve meditar, praticar e estudar.
  • Vivência dos preceitos: o maior argumento da verdade é a transformação de caráter. O estudo sem prática é vazio.
  • Respeito plural: acolher o bem onde quer que esteja; valorizar os mediadores escolhidos pelo tempo, sem adorar formas.
  • Discernimento mediúnico: fortalecer práticas que filtrem ruídos e privilegiem mensagens que orientem para o bem comum.

Essas orientações derivam diretamente das observações de Miramez: a revelação é paciente, progressiva e pedagógica; cabe ao homem corresponder com responsabilidade.

Chamada ao trabalho interior

A resposta da pergunta 626 e o comentar de Miramez nos colocam diante de uma interpretação consoladora e dinâmica da Revelação: as leis divinas não eram uma novidade trazida de fora por um agente isolado; elas sempre atuaram e sempre atuam, imprimindo-se na Natureza e na consciência. Contudo, Jesus veio como clarificador supremo, para revelar a doutrina em sua pureza e para oferecer o modelo vivo da aplicação dessas leis. O processo é progressivo, paciente e pedagógico — e nós, enquanto humanidade encarnada, somos tanto os campo preparados pela providência quanto os jardineiros que devem cuidar da semente.

Se há algo que a experiência mediúnica e o estudo prolongado me ensinaram, é que a compreensão verdadeira não se limita a assentir intelectualmente a uma tese; ela consiste em transformar-se pelo amor, pela prática e pelo serviço. Portanto, mais do que saber se as leis eram conhecidas antes de Jesus — questão que, em si, já responde que sim, em graus variados — o convite maior é: que cada um de nós se disponha a ser, hoje, instrumento vivo daquilo que foi outrora semente, revelando no cotidiano a lei que a sabedoria eterna escreveu “por toda parte”.