A Cólera
A Cólera, segundo um Espírito Protetor

Quando Kardec nos apresentou ao O Evangelho Segundo o Espiritismo, ele não apenas nos ofereceu uma coletânea de ensinamentos morais baseados nas palavras de Jesus, mas também nos abriu o entendimento para uma leitura espiritual mais ampla, enriquecida por mensagens de Espíritos elevados. No capítulo IX, intitulado Bem-aventurados os que são brandos e pacíficos, encontramos lições que se aplicam com rigor e ternura à nossa vida cotidiana. Entre elas, destaca-se a profunda análise da cólera, feita por um Espírito protetor em Bordéus, no ano de 1863.
O texto, aparentemente simples, contém uma densidade de ensinamentos que, quando meditados, revelam aspectos fundamentais do nosso aperfeiçoamento moral. Por isso, proponho-me aqui a analisá-lo em detalhes, aplicando-o às nossas vivências pessoais e comunitárias, à luz da Doutrina Espírita e do convite permanente de Jesus à mansuetude e à pacificação.
O orgulho como raiz da cólera
O Espírito protetor inicia sua instrução apontando a origem profunda da cólera: o orgulho. Esta afirmação merece nossa atenção, porque muitas vezes atribuímos nossos acessos de ira a causas exteriores — uma contrariedade, uma injustiça percebida, um obstáculo inesperado. No entanto, a orientação espiritual nos convida a mergulhar na intimidade da alma e reconhecer que, na maior parte das vezes, a irritação nasce do orgulho ferido.
Ele descreve que nos julgamos “mais do que somos”, e essa supervalorização de nós mesmos faz com que não suportemos comparações que possam nos diminuir. Quando alguém nos contradiz ou quando as circunstâncias nos colocam em posição de humildade, reagimos com cólera. Aqui se encontra uma chave importantíssima: a cólera não é apenas uma reação emocional; ela é um sintoma de uma visão distorcida de nós mesmos.
Quantas vezes, nas lides mediúnicas ou nos trabalhos de assistência espiritual, observamos irmãos profundamente dedicados, mas que se desestabilizam diante de uma crítica? Por trás da sensibilidade exacerbada, muitas vezes está o orgulho que ainda não foi plenamente educado. O Espírito protetor nos alerta, portanto, a um exercício constante de autoconhecimento: identificar, em nossos rompantes, a raiz de orgulho que nos impede de aceitar a limitação ou a correção fraterna.
A análise da emoção e o convite à lucidez
O Espírito continua exortando: “Pesquisai a origem desses acessos de demência passageira…”. A palavra “demência” não é casual. Quando nos deixamos dominar pela cólera, momentaneamente perdemos a razão e nos aproximamos do estado instintivo. A inteligência, que deveria guiar nossas ações, fica turvada. A recomendação espiritual é clara: façamos um exame profundo, investiguemos, observemos a nós mesmos.
Essa atitude de autoanálise é essencial na proposta espírita. O Livro dos Espíritos, em suas questões finais, já nos sugere a prática diária de interrogarmos nossa consciência: Que fiz hoje de bom? Em que errei? Que passo posso dar amanhã? Aplicando ao tema da cólera, poderíamos nos perguntar ao final de cada dia: Quando me irritei, qual foi o motivo real? Era mesmo justificável ou meu orgulho foi tocado?
Esse exercício nos conduzirá à lucidez. Perceberemos, pouco a pouco, que muitas das nossas irritações se originam de contrariedades banais, de expectativas não atendidas, de pequenas vaidades feridas. E, ao reconhecer isso, damos o primeiro passo para vencer a cólera.
A irracionalidade dos gestos coléricos
O Espírito protetor descreve cenas que todos nós já testemunhamos — ou protagonizamos: o homem colérico que, em seu frenesi, atira-se contra a natureza bruta, contra objetos inanimados, quebrando-os porque não lhe obedecem.
Essa imagem é ao mesmo tempo trágica e cômica. Quem de nós não se envergonhou após bater à porta com força, arremessar um objeto, ou mesmo ofender verbalmente alguém num momento de cólera? Se nos observássemos a sangue-frio, diz o Espírito, sentiríamos medo ou nos acharíamos ridículos.
Este é um ponto fundamental: a cólera obscurece a razão e nos faz agir de maneira contrária à nossa própria dignidade espiritual. Muitas vezes, depois que a emoção passa, sobra o arrependimento, o remorso, ou ao menos a consciência do vexame. O Espírito convida-nos a refletir sobre a impressão que causamos aos outros: que imagem de nós mesmos estamos projetando? O cristão espírita, comprometido com a reforma íntima, deve buscar coerência entre o ideal que abraça e as atitudes que manifesta.
A cólera como fonte de sofrimento
Outro aspecto profundo que o Espírito aborda é o sofrimento gerado pela cólera. Em primeiro lugar, ela prejudica a própria saúde: altera o sistema nervoso, afeta o coração, desequilibra as funções orgânicas. A ciência médica contemporânea confirma isso com abundância de estudos, demonstrando a ligação entre estados emocionais negativos e doenças psicossomáticas.
Além disso, o Espírito alerta: a cólera compromete a vida. Quantos acidentes ocorrem em momentos de fúria? Quantas decisões precipitadas trazem consequências irreversíveis? Quantos relacionamentos são destruídos por palavras impensadas?
E há ainda o sofrimento que causamos aos que nos cercam. Aqui o ensinamento adquire uma delicadeza comovente: “Se tem coração, não lhe será motivo de remorso fazer que sofram os entes a quem mais ama?” Essa pergunta toca o mais profundo do nosso ser. Quando perdemos a paciência com um filho, um cônjuge, um amigo, ou mesmo com os companheiros de ideal na seara espírita, que marcas deixamos neles? Quantos se sentem feridos e se afastam de nós?
O Espírito nos faz refletir sobre um cenário extremo: e se, num acesso de fúria, praticássemos um ato que houvesse de deplorar toda a vida? Essa advertência é séria e real. Há crimes cometidos num instante de cólera que destroem vidas, famílias e sonhos. O Espiritismo, ao nos alertar sobre as consequências dos nossos atos, nos convida a uma vigilância constante sobre nossas emoções.
A cólera não exclui qualidades do coração, mas impede o bem
Um ponto de grande equilíbrio doutrinário está na afirmação: “A cólera não exclui certas qualidades do coração, mas impede se faça muito bem e pode levar à prática de muito mal.”
Que ensinamento profundo! Nem toda pessoa colérica é má. Muitos de nós, mesmo desejando o bem, carregamos tendências passionais que nos atrapalham. Isso é reconfortante, pois nos lembra que ainda temos virtudes e que não estamos condenados pela nossa imperfeição. Ao mesmo tempo, é um alerta: a cólera nos torna ineficazes na prática do bem.
Pensemos, por exemplo, no trabalhador espírita que, tomado de impaciência, se desentende com os companheiros e abandona uma tarefa. Ou no pai que, colérico, afasta o filho em vez de educá-lo com amor. Ou ainda no profissional que, pela irritação constante, cria um ambiente de trabalho pesado e improdutivo. A cólera age como uma névoa, impedindo que a luz das nossas melhores intenções brilhe.
A cólera é contrária à caridade e à humildade cristãs
Finalmente, o Espírito protetor traz a chave para nossa reflexão espírita: “O espírita, ao demais, é concitado a isso por outro motivo: o de que a cólera é contrária à caridade e à humildade cristãs.”
Aqui está o núcleo do ensinamento. Caridade não é apenas dar esmola ou socorrer o próximo em dificuldades materiais; é também e, sobretudo, tratar o outro com respeito, paciência, indulgência. A humildade, por sua vez, é reconhecer que somos todos aprendizes, imperfeitos, em marcha evolutiva. Quando nos deixamos dominar pela cólera, negamos a prática desses dois pilares do Cristianismo.
O espírita é chamado a trabalhar sua reforma íntima justamente para que, diante das provas da vida, possa agir com serenidade. Isso não significa se tornar apático ou indiferente, mas sim cultivar um estado íntimo em que as contrariedades não provoquem tempestades. O Cristo nos disse: “Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a Terra.” A mansuetude é a vitória sobre a cólera.
Aplicações práticas para o espírita de hoje
A mensagem do Espírito protetor, datada de 1863, permanece absolutamente atual. Vivemos tempos de pressa, de disputas verbais nas redes sociais, de intolerância crescente. Em nosso cotidiano, somos constantemente testados: no trânsito, no trabalho, em família, até mesmo dentro da Casa Espírita. Como aplicar, então, esses ensinamentos?
Auto-observação diária
Reserve alguns minutos ao final do dia para rever suas atitudes. Quando sentiu irritação, investigue: qual foi o motivo real? O que isso revela do seu orgulho?
Prece e vigilância
Ao perceber que a irritação está surgindo, eleve o pensamento a Deus. Uma prece simples pode mudar a vibração do momento. Jesus nos disse: “Orai e vigiai.”
Exercício da humildade
Aceite críticas com serenidade. Reconheça que todos têm algo a nos ensinar, mesmo quando apontam nossas falhas. Lembre-se de que somos espíritos em aprendizado.
Cuidado com a saúde emocional
Pratique atividades que favoreçam o equilíbrio: leitura edificante, meditação, exercícios físicos moderados. Uma mente serena reage melhor às contrariedades.
Caridade no trato diário
Seja indulgente com os erros alheios. Lembre-se de que você também erra e precisa de compreensão. Assim, a cólera vai perdendo espaço para a fraternidade.
A cólera e a reforma íntima
A Doutrina Espírita nos ensina que a verdadeira reforma do mundo começa na reforma íntima de cada um. Combater a cólera não é tarefa fácil, pois ela está ligada a instintos profundos e ao orgulho secular que carregamos. Contudo, o esforço vale a pena, porque cada pequena vitória sobre nós mesmos é uma luz que acendemos ao nosso redor.
Ao dominar a cólera, tornamo-nos instrumentos mais úteis para o bem. Nossa presença passa a ser pacificadora. Nosso lar se torna mais harmonioso. Nosso trabalho na seara espírita ganha em eficácia. E, principalmente, nos aproximamos mais do modelo que Jesus nos propôs.
Conclusão
O ensinamento do Espírito protetor, registrado por Allan Kardec em O Evangelho Segundo o Espiritismo, capítulo IX, item 9, é um convite à reflexão e à prática. Ele nos mostra que a cólera, longe de ser um simples defeito de temperamento, está profundamente ligada ao orgulho e ao egoísmo que ainda trazemos. Ela nos afasta da caridade e da humildade, causando sofrimento a nós mesmos e aos que amamos.
Mas o mesmo ensinamento nos dá esperança: a cólera não elimina nossas qualidades do coração. Podemos, com esforço e vigilância, aprender a dominá-la. Esse trabalho íntimo é parte essencial da nossa evolução como espíritos imortais.